quarta-feira, 10 de junho de 2009

O MAIS PURO AMOR DE ABELARDO E HELOÍSA

I
DE ABELARDO A HELOÍSA
O que é tua beleza ensimesmada?
O que existe em teu olhar tão profundo?
Tuas mãos pousam sobre o livro e esperam.
Tuas horas são lentas cismas sobre ti mesma.
Devolves ao tempo a tua urgência.
Tudo verte o seu olhar absoluto
sobre os vergéis de tua casa.
Abram-se os mapas sobre a mesa
a traçar os caminhos que retornam.
Teu dia não se alonga mais do que a manhã.
O fremir das janelas não se ouve.
No silêncio, construímos a nossa morada,
esse tempo de vir a ser que se aproxima.
Tudo é, sem demora, vida ou nada,
e, por isso, fico à espera do teu amor.

30/05/2009 – 21h13

II
DE HELOÍSA A ABELARDO
Deixa a voz alçar o voo leve
na noite que temos para nós.
Estás à beira de tua honra e eu à beira de ti.
Não me comovo às lágrimas, senão por teus olhos,
e eles veem tudo o que existe em mim.
Não sou senão a serva de um amor imenso,
este que me habita e me devasta.
Por onde me leve, o amor me tem pela mão,
e me guia até onde estás.
Que breve perfume dessas horas se destila
nas pétalas da flor que nos deslumbra?
É o seu aroma ou o nosso que sentimos?
Meu amor é mais puro por não ver
nada mais, nem outro, senão a ti.

5/06/2009 – 23h29

III
DE HELOÍSA A ABELARDO
Nunca, dizes, te afastarás de mim,
mas, mesmo assim, me deixaste.
Meu pensamento se consome em chamas,
minha lucidez me falta neste momento de vertigem.
Somos seres absolutos, em absoluta transgressão,
servos e santos, blasfemos e hipócritas.
Ó geração de enfermos!
Ó vida! O que nos deste, nos tiraste!
Restou tão pouco de nós sobre este estreito leito.
Ó dor maior que o mundo!
Ó planger de horas que não bastam!
Choram os filhos sem suas mães.
Choram os amantes sem o seu amor.

9/06/2009 – 10h44

IV
DE ABELARDO A HELOÍSA
Tens razão em tua revolta,
tens razão quando clamas por justiça.
Deus não se apiedou de nossa falta.
Ele não se curvou à nossa vontade.
O que faltou a nós para respeitá-Lo,
que do Amor sagrado não conhecíamos?
A nós, coube a culpa,
a nós, coube o lamento.
Tua dor não é só tua.
É meu também o teu tormento.
Meu sangue me cobriu,
como te cobriu o teu.
De ti, nasceu um filho.
De mim, minha vergonha.

9/06/2006 – 14h26

V
DE HELOÍSA A ABELARDO
Senhor, pai, esposo, irmão, amado,
ouve o clamor de todas as vozes.
Dissemos o que não poderia ser dito.
Fizemos o que não poderia ser feito.
A nós, restou a renúncia,
o gesto extremo de deixar partir
o maior bem, o que mais se queria,
cuja solidão não nos consola,
cujo abandono não compreendemos.
O amor foi maior que tudo.
E este o silêncio que nos impusemos.
Nada nos restou dizer. Vivemos tudo,
antes que a mão avara nos cortasse ao meio.

10/06/2009 – 19h02

VI
DE ABELARDO A HELOÍSA
Bem amada, eu te desposo,
com o ardor, a ânsia e a busca de cada dia,
como fogo a aquecer a alma,
como bálsamo das horas calmas.
Eu te aceito na pureza de teu amor casto,
na compreensão e aceitação recíprocas,
embora tudo passe, em termos sido os escolhidos.
Eu te desposo, diante de Deus e dos homens,
para que o nosso bem se preserve e se torne sagrado.
Eis meu sacrifício e minha honra,
desposar a única mulher, meu único amor,
senhora da minha vida e do meu pensamento,
mesmo em segredo, esta justa medida,
esta forma de guardar o que já é nosso.

VII
DE HELOÍSA A ABELARDO
Bem amado, eu te desposo,
com devoção e amor inabaláveis,
seja pelo tempo ou pela vida,
seja pela palavra ou seu sentido.
Eu te desposo por tua vontade,
aceitando o teu desejo,
não o meu, de ter-te comigo,
pois tudo eu deixaria para que vivesses.
Eis o meu voto de lealdade.
Eu te desposo, único homem, único amado,
único entre todos, senhor da minha vida,
que aceito, em segredo, para velar,
enquanto eu viver, enquanto eu for tua,
enquanto eu estiver em teu pensamento.

VIII
DE ABELARDO A HELOÍSA
Meu pecado foi não ser casto.
Meu castigo foi me tornar.
Meu Pai, que mal fiz em amar-te
e deixar que me amasses?
Pela mão dos homens, Deus infligiu-me
o castigo da castidade para melhor servi-Lo.
Eu não fui digno Dele, não fui digno de ti.
Quis aproveitar-me da sorte, enquanto o diabo rondava.
Quis ser mais ágil que os olhos que te guardavam.
Quis ocultar o matrimônio para me preservar.
Meu egoísmo me castrou e me tornei o que sou.
Este é o meu amor verdadeiro, esta, a minha missão.
Se por ti errei, por Deus fui corrigido.
Nosso amor redimiu-me perante todos.

IX
DE HELOÍSA A ABELARDO
Nublados dias de nossas venturas,
quem por amor não sofreu?
Do amor, colhemos as amargas horas
que impôs a nós o sacrifício.
Dei-te a minha ternura e dele bebeste o fel.
Como te pedir que renunciasses a ti mesmo?
Eu não quis isto.
Não quis que te humilhasses.
Não quis que perdesses a tua glória.
Não quis que negasses a Deus.
Se o amor por mim te destruísse,
a ele, por amor, eu renunciaria,
pois há mais amor em não te ter
do que ter-te só por amor.

11/06/2009 – 18h04

X
DE HELOÍSA A ABELARDO
No silêncio murmurado de minhas preces,
lembro de nossas mãos entrelaçadas,
de teu corpo sobre o meu, e eu tão tua,
abrindo minha alma para receber-te.
Nossas noites eram só nossas e, nesse murmúrio,
acalanto as lembranças do que Deus me privou.
És homem ainda, jamais deixarás de ser.
Teu amor me basta, como te basta o meu,
e nada quero senão a tua companhia.
Foram as palavras e a filosofia
que te roubaram de mim, essa crueldade
extrema, forjada por homens maus.
O silêncio selou nosso destino,
e sepultou em vida o que viveu.

12/06/2009 – 18h00

XI
DE ABELARDO A HELOÍSA
Bem amada, irmã, serva do Senhor,
a quem sirvo ainda amando-te com todo o meu amor.
É Dele o amor que nos nutre, Ele quem nos uniu,
e nos mantém unidos por Amor a Ele.
Amo-te mais sem te ter do que tendo-te comigo.
Estás em tudo que faço, toda obra minha tem tua mão.
Teu silêncio está no meu, e minhas palavras
repetem as tuas. Sou o que restou do homem que fui,
mas este ainda segue te amando, mesmo longe,
distante de corpo, jamais de alma.
Estas vivem juntas nas noites de vigília,
sob a abóbada celeste que nos testemunha.
Somos o anúncio vivo do nosso amor,
como eco de nossas palavras.

12/06/2009 – 18h12

XII
DE HELOÍSA A ABELARDO
Nem Luís nem Eleonor se apiedaram.
Notre-Dame ergueu-se em dor,
abraçando, entre seus arcos, o nosso vazio.
Ao largo, flui o Sena, sem retorno.
Paris se cala e testemunha o nosso horror.
O que será de ti, meu amado?
O que será de mim, tua esposa?
Tu, exilado, escondes o teu rosto em vergonha.
Em Argenteuil, onde nasci e novamente vivo,
o véu desce sobre mim e me amortalha.
Tu, também, te entregas ao martírio.
Enlutados, a morte nos dita regras.
Aqui se encerra a nossa história,
mas, não o nosso amor.

14/06/2009 – 23h30

Bibliografia:
Abelard’s Love, de Luise Rinser. Tradução de Jean M. Snook. University of Nebraska Press, Lincoln e Londres, 1998.
Correspondência de Abelardo e Heloísa. Apresentação de Paul Zumthor, tradução de Lúcia Santana Martins. Martins Fontes, Rio de Janeiro, 2002.
Héloïse et Abélard, de Étienne Gilson. 3ª edição revista. Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1978.
Os intelectuais na Idade Média, de Jacques Le Goff. Tradução de Marcos de Castro. 2ª edição. José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 2006.

5 comentários:

  1. Olá, TC!
    Belíssima série, cada qual mais bonito!
    Tenho cá meus "Cantos de Amor", inspirados nos "Cânticos dos Cânticos", de Salomão, e esses seus versos me trouxeram a recordação da delícia dos poemas antigos. Parabéns!
    Beijos,
    Maial

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  2. Grande momento literário , leio aqui neste espaço, uma escolha soberba, diante de tudo que se pode imaginar do amor entre duas pessoas, meus cumprimentos,
    Efigênia Coutinho

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  3. Efigênia, somente agora li seu comentário.
    Que bom, que bom, amiga, que gostaste.
    Beijos.
    Thereza Christina

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  4. Lindo esse amor de Heloísa e Abelardo! Parabéns por lembrá-lo!!

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  5. Ameei, a tempos venho procurando as cartas de Abelardo de Eloisa, não me canso de ler! Prabéns

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