sexta-feira, 12 de junho de 2009


Tenho recebido vários emails apreciando os poemas da série que iniciei a escrever no final de maio e aqui cabe uma explicação: não são traduções de nenhum texto escrito pelos dois amantes mais célebres da Idade Média, ou sobre eles, são meus. Desde os 15 anos, leio e pesquiso de forma aleatória a vida de Pedro Abelardo e Heloísa, que viveram um amor celebrado por vários poetas e romancistas, como Alexander Pope e Jean-Jacques Rousseau.Porém com minhas recentes traduções, criou-se a confusão e tenho explicado a quem me perguntou e, para não prolongar a dúvida aqui vai a explicação: escolhi, no final do mês passado, este casal para criar os diálogos em poesia, com poemas epistolares, a partir do que escreveram e do que foi escrito sobre eles, além da minha própria imaginação já imbuída há anos com a história deles.
Eles viveram no século XII e a história se passa em torno de 1117 quando Abelardo convence o tio de Heloísa a se tornar tutor dela. Abelardo tinha 37 anos e Heloísa 17. Ele já era muito conhecido como filósofo e tinha boa reputação, mas encantou-se com a moça linda e inteligente que conhecera, única à altura dele. Heloísa também apaixonou-se por ele e por algum tempo viveram seu amor às escondidas, até que o tio Fulbert descobrisse e se achasse traído em sua confiança, expulsando Abelardo de sua casa. Os enamorados continuaram a se encontrar até descobrirem que Heloísa estava grávida. Ele a raptou, levando-a para a casa da irmã na Bretanha onde ela deu à luz a um menino, Astrolábio, nome escolhido a partir do jogo de letras do nome do pai.
A tragédia só estava tomando sua forma. Abelardo tentou redimir-se perante o tio, casando-se com Heloísa, mas em segredo, para que sua carreira de professor e clérigo não fosse afetada. Heloísa mesmo se opunha ao casamento para não prejudicar o trabalho do amado. Além disso, pediu a ela que fosse para um convento e tomasse o véu de noviça para disfarçar o casamento. O passo foi mal interpretado por Fulbert que julgou que ele a abandonara e mandou castrá-lo. Diante da desgraça, Abelardo fugiu, para esconder sua vergonha e Heloísa continuou confinada no convento. O próprio tio perdeu o cargo político que tinha de cônego de Notre-Dame, igreja onde Abelardo e Heloísa se casaram.
Depois de ambos fazerem os votos como padre e freira, passaram muitos anos sem se ver, até que uma carta de Abelardo dirigida a um amigo chegasse às suas mãos e ela resolveu responder a ele. Daí passaram a escrever sobre o que lhes acontecera quinze anos antes, quando Heloísa expressa todo o seu amor ainda vivo por Abelardo e ele responde que este amor transformou-se na melhor forma de servir a Deus para os dois (Correspondência de Abelardo e Heloísa, Martins Fontes, 2002).
Abelardo morreu 20 anos antes de Heloísa e foi enterrado no Paracleto onde ela era abadessa e ela pediu para ser enterrada junto dele, em 1163. Ambos morreram com a mesma idade, 63 anos. Diz a lenda que ao ser enterrada, Abelardo abriu os braços para recebê-la. Uma bela metáfora para a reunião de um casal que teve de viver separado, nutrindo o grande amor que sentiam à distância.
Em 1817, seu túmulo foi removido para o cemitério Père Lachaise, para incentivar os parisienses a levararem os seus mortos para lá. Hoje é o cemitério mais famoso do mundo, reunindo personalidades célebres, de Chopin a Jim Morrison, de Oscar Wilde a Maria Callas, de Allan Kardec a Paul Eluard.
Sobre a tumba, há uma frondosa castanheira, que derruba seus frutos à volta do lugar onde estão enterrados, e as efígies colocadas sobre os túmulos mostram ainda a beleza de Heloísa, ao lado de seu eterno Abelardo. Esta é a foto que coloquei no blog que tirei quando os visitei em maio de 2005. Uma bela história para ser contada no Dia dos Namorados.
Obrigada pelo apoio e incentivo que tenho recebido de todos e não haveria outra forma de comemorar o dia de hoje senão celebrando um dos amores reais mais conhecidos da História.


quarta-feira, 10 de junho de 2009

O MAIS PURO AMOR DE ABELARDO E HELOÍSA

I
DE ABELARDO A HELOÍSA
O que é tua beleza ensimesmada?
O que existe em teu olhar tão profundo?
Tuas mãos pousam sobre o livro e esperam.
Tuas horas são lentas cismas sobre ti mesma.
Devolves ao tempo a tua urgência.
Tudo verte o seu olhar absoluto
sobre os vergéis de tua casa.
Abram-se os mapas sobre a mesa
a traçar os caminhos que retornam.
Teu dia não se alonga mais do que a manhã.
O fremir das janelas não se ouve.
No silêncio, construímos a nossa morada,
esse tempo de vir a ser que se aproxima.
Tudo é, sem demora, vida ou nada,
e, por isso, fico à espera do teu amor.

30/05/2009 – 21h13

II
DE HELOÍSA A ABELARDO
Deixa a voz alçar o voo leve
na noite que temos para nós.
Estás à beira de tua honra e eu à beira de ti.
Não me comovo às lágrimas, senão por teus olhos,
e eles veem tudo o que existe em mim.
Não sou senão a serva de um amor imenso,
este que me habita e me devasta.
Por onde me leve, o amor me tem pela mão,
e me guia até onde estás.
Que breve perfume dessas horas se destila
nas pétalas da flor que nos deslumbra?
É o seu aroma ou o nosso que sentimos?
Meu amor é mais puro por não ver
nada mais, nem outro, senão a ti.

5/06/2009 – 23h29

III
DE HELOÍSA A ABELARDO
Nunca, dizes, te afastarás de mim,
mas, mesmo assim, me deixaste.
Meu pensamento se consome em chamas,
minha lucidez me falta neste momento de vertigem.
Somos seres absolutos, em absoluta transgressão,
servos e santos, blasfemos e hipócritas.
Ó geração de enfermos!
Ó vida! O que nos deste, nos tiraste!
Restou tão pouco de nós sobre este estreito leito.
Ó dor maior que o mundo!
Ó planger de horas que não bastam!
Choram os filhos sem suas mães.
Choram os amantes sem o seu amor.

9/06/2009 – 10h44

IV
DE ABELARDO A HELOÍSA
Tens razão em tua revolta,
tens razão quando clamas por justiça.
Deus não se apiedou de nossa falta.
Ele não se curvou à nossa vontade.
O que faltou a nós para respeitá-Lo,
que do Amor sagrado não conhecíamos?
A nós, coube a culpa,
a nós, coube o lamento.
Tua dor não é só tua.
É meu também o teu tormento.
Meu sangue me cobriu,
como te cobriu o teu.
De ti, nasceu um filho.
De mim, minha vergonha.

9/06/2006 – 14h26

V
DE HELOÍSA A ABELARDO
Senhor, pai, esposo, irmão, amado,
ouve o clamor de todas as vozes.
Dissemos o que não poderia ser dito.
Fizemos o que não poderia ser feito.
A nós, restou a renúncia,
o gesto extremo de deixar partir
o maior bem, o que mais se queria,
cuja solidão não nos consola,
cujo abandono não compreendemos.
O amor foi maior que tudo.
E este o silêncio que nos impusemos.
Nada nos restou dizer. Vivemos tudo,
antes que a mão avara nos cortasse ao meio.

10/06/2009 – 19h02

VI
DE ABELARDO A HELOÍSA
Bem amada, eu te desposo,
com o ardor, a ânsia e a busca de cada dia,
como fogo a aquecer a alma,
como bálsamo das horas calmas.
Eu te aceito na pureza de teu amor casto,
na compreensão e aceitação recíprocas,
embora tudo passe, em termos sido os escolhidos.
Eu te desposo, diante de Deus e dos homens,
para que o nosso bem se preserve e se torne sagrado.
Eis meu sacrifício e minha honra,
desposar a única mulher, meu único amor,
senhora da minha vida e do meu pensamento,
mesmo em segredo, esta justa medida,
esta forma de guardar o que já é nosso.

VII
DE HELOÍSA A ABELARDO
Bem amado, eu te desposo,
com devoção e amor inabaláveis,
seja pelo tempo ou pela vida,
seja pela palavra ou seu sentido.
Eu te desposo por tua vontade,
aceitando o teu desejo,
não o meu, de ter-te comigo,
pois tudo eu deixaria para que vivesses.
Eis o meu voto de lealdade.
Eu te desposo, único homem, único amado,
único entre todos, senhor da minha vida,
que aceito, em segredo, para velar,
enquanto eu viver, enquanto eu for tua,
enquanto eu estiver em teu pensamento.

VIII
DE ABELARDO A HELOÍSA
Meu pecado foi não ser casto.
Meu castigo foi me tornar.
Meu Pai, que mal fiz em amar-te
e deixar que me amasses?
Pela mão dos homens, Deus infligiu-me
o castigo da castidade para melhor servi-Lo.
Eu não fui digno Dele, não fui digno de ti.
Quis aproveitar-me da sorte, enquanto o diabo rondava.
Quis ser mais ágil que os olhos que te guardavam.
Quis ocultar o matrimônio para me preservar.
Meu egoísmo me castrou e me tornei o que sou.
Este é o meu amor verdadeiro, esta, a minha missão.
Se por ti errei, por Deus fui corrigido.
Nosso amor redimiu-me perante todos.

IX
DE HELOÍSA A ABELARDO
Nublados dias de nossas venturas,
quem por amor não sofreu?
Do amor, colhemos as amargas horas
que impôs a nós o sacrifício.
Dei-te a minha ternura e dele bebeste o fel.
Como te pedir que renunciasses a ti mesmo?
Eu não quis isto.
Não quis que te humilhasses.
Não quis que perdesses a tua glória.
Não quis que negasses a Deus.
Se o amor por mim te destruísse,
a ele, por amor, eu renunciaria,
pois há mais amor em não te ter
do que ter-te só por amor.

11/06/2009 – 18h04

X
DE HELOÍSA A ABELARDO
No silêncio murmurado de minhas preces,
lembro de nossas mãos entrelaçadas,
de teu corpo sobre o meu, e eu tão tua,
abrindo minha alma para receber-te.
Nossas noites eram só nossas e, nesse murmúrio,
acalanto as lembranças do que Deus me privou.
És homem ainda, jamais deixarás de ser.
Teu amor me basta, como te basta o meu,
e nada quero senão a tua companhia.
Foram as palavras e a filosofia
que te roubaram de mim, essa crueldade
extrema, forjada por homens maus.
O silêncio selou nosso destino,
e sepultou em vida o que viveu.

12/06/2009 – 18h00

XI
DE ABELARDO A HELOÍSA
Bem amada, irmã, serva do Senhor,
a quem sirvo ainda amando-te com todo o meu amor.
É Dele o amor que nos nutre, Ele quem nos uniu,
e nos mantém unidos por Amor a Ele.
Amo-te mais sem te ter do que tendo-te comigo.
Estás em tudo que faço, toda obra minha tem tua mão.
Teu silêncio está no meu, e minhas palavras
repetem as tuas. Sou o que restou do homem que fui,
mas este ainda segue te amando, mesmo longe,
distante de corpo, jamais de alma.
Estas vivem juntas nas noites de vigília,
sob a abóbada celeste que nos testemunha.
Somos o anúncio vivo do nosso amor,
como eco de nossas palavras.

12/06/2009 – 18h12

XII
DE HELOÍSA A ABELARDO
Nem Luís nem Eleonor se apiedaram.
Notre-Dame ergueu-se em dor,
abraçando, entre seus arcos, o nosso vazio.
Ao largo, flui o Sena, sem retorno.
Paris se cala e testemunha o nosso horror.
O que será de ti, meu amado?
O que será de mim, tua esposa?
Tu, exilado, escondes o teu rosto em vergonha.
Em Argenteuil, onde nasci e novamente vivo,
o véu desce sobre mim e me amortalha.
Tu, também, te entregas ao martírio.
Enlutados, a morte nos dita regras.
Aqui se encerra a nossa história,
mas, não o nosso amor.

14/06/2009 – 23h30

Bibliografia:
Abelard’s Love, de Luise Rinser. Tradução de Jean M. Snook. University of Nebraska Press, Lincoln e Londres, 1998.
Correspondência de Abelardo e Heloísa. Apresentação de Paul Zumthor, tradução de Lúcia Santana Martins. Martins Fontes, Rio de Janeiro, 2002.
Héloïse et Abélard, de Étienne Gilson. 3ª edição revista. Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1978.
Os intelectuais na Idade Média, de Jacques Le Goff. Tradução de Marcos de Castro. 2ª edição. José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 2006.